quarta-feira, 17 de junho de 2009

Qual é o motivo da dor...

dói, dói muito, e doeria meis se se estivesse sozinha. Mas se estou sozinha, qual o limite desse nó na garganta? Não sei, cada dor parece ser a última e a pior. Contudo vem sempre outra para superar. Talvez a solidão dos dias me levem à força, ou até a mais profunda tristeza mesmo.
E o pior de tudo é que eu sei toda a verdade, absolutamente tudo o que eu preciso saber para entender que a trajetória será injusta e só.

Dessa vez, sem Mandarina... Apenas Talita Kumy

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Ilhas




Tão cinza quanto nosso passado
Tão pesado quando a nossa distância
Tão isolados!

Passados

Volto a falar besteiras
Empunhar cigarros
Beber sem copo
Me desperdiçar.
A fantasia adorna a tristeza fria
De uma pele quase morta,
Ou quase viva.
Flerto contigo.
Oscilo.
Não vejo a linha tênue
Aquilo que separa a verdade do ridículo,
O ósculo e o escarro.
A cegueira, a embriagues, o sepulcro das palavras
Minhas mentiras são aparatos para algo viver
Vive, dança, canta, respira lembranças.

As pálpebras me levam ao claro
Aromas invadem
Adentro teus aposentos
Nervos, desejos, afagos.
Rimas labiais sedutoras,
Meu corpo e sua razão
O toque.
Edredom rubro sobre tua pele alva.
Contrastes.
A posse de um único instante,
Em mim o poço, em ti um copo d’água.
O encaixe.
Um tom de loucura na paisagem,
Minha nudez, teus olhos, nosso céu.
A dança.
O gosto aguçado que o paladar não descreve.
E tudo se finda.

Erguem-se as pálpebras
A escuridão retorna sem dó.
Um mundo inodor, insípido, incolor.
Não há sua estupidez.
Acesso tua cordialidade inexistente.
És visceral, mas restaram-me as convenções.
Amanheço degustando a paciência,
Viro à esquina , à esquerda,
Misturo pavor e vontade,
Quero ser minha própria fantasia,
Acabo por virar realidade.

Inacabado

Ela: (Num vácuo de sensações exclama) Monocromática vida minha!
Ele replica:
Nada é monocromático. Nada!
Se de tuas paixões há escassez de cor
Entre teus dedos estão os tons.
Não podes negar tuas nuances,
Tuas curvas sem arestas...
Nem eu o teu passado.

Teu ímpar degradê castanho,
Que faz a visão deslizar
Estancando ao raiar do teu riso.
O súbito desejo da alva pele,
Da face arredondada e terna,
Da tatuagem liberta e do sinal que aprisiona.
Reflito (me) dentro do teu olhar
Sempre escondido e escancarado.
Como se não bastassem
Como se fossem poucas as combinações,
Tuas cores ousam dançar.
Entontece o sacolejo de tuas ancas,
Negra saia cobre pernas coloridas do teu bailado.


Procurei cores pra trazer-te,
Agora que achei, seguem-se as pinturas...
Mortas!
Apenas tu és misto de cores vivas.
Eu, apenas o contemplador de tua ternura.

Ela: (entra num luxo radioso de sensações)

Cotidiano da fuga

Vasculhando rastros de minha propriedade
Encontro partidas, queimas noturnas.
A porta da lembrança escancarada,
O desejo que outrora me movia
Hoje esconde-se acovardada em algum cômodo...
Calo! Sem a beleza da rosa do povo,
Ou a frieza da boca escarrada.
Calo!
Esqueço!
Vasculho!
Escondo!
Saio!

Poderia ter acontecido...

Nelson Rodrigues e Maysa se encontram...

Ele: Minha cara, todo o desejo é vil. Hoje é muito difícil não ser canalha.
Ela: Tu me desejaste e agora meu mundo caiu, e me fez ficar assim!
Ele: Vendo-te assim, penso que a misericórdia também corrompe, e de certo modo, me corrompi.
Ela: Você conseguiu, e agora diz que tem pena de mim.
Ele: Consegui, até porque o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro!
Ela: Não sei se me explico bem, eu nada pedi, nem a você, nem a ninguém!
Ele: Bem, como todo brasileiro, se não fui canalha na véspera, serei canalha no dia seguinte!(risos sarcásticos)
Ela: Não fui eu que caí?
Ele: De fato, entretanto não existe família sem adúltera! Mentiria menos se poucas fossem as perguntas!
Ela: Sei que você me entendeu! Sei que também não vai se importar!Se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar!
Ele: Ser devorada por seus próprios escrúpulos, esse será seu fim.

Humanizando a vida em tempos neoliberais

Escrevi esse texto em 2007, quando perdi a matéria de clínica. Em 2008, tive aula prática com outro paciente terminal. Certas coisas não mudam de um ano para o outro, mas eu mudei e hoje estudo a concepção de saúde das pessoas que permitem esse tipo de prática, tentando transformar o mundo. Além disso estou na linha de frente em defesa dos Hospitais Universitários. Não é um campo muito bom para militância, mas de outro jeito a vida não vale a pena...


Maceió, 06 de abril de 2007.

Eu poderia escrever mais um daqueles textos de livro de auto-ajuda, contando uma história triste para que supostamente as pessoas despertem e vejam “como a vida é linda para mim, e que existe gente pior que eu”. Esse é o caminho mais fácil, mas é de pseudo-facilidades que se perde a vida. Essa semana tive aula prática no hospital universitário, foi o segundo caso clínico que meu grupo encarregou-se de estudar. Tratava-se de uma jovem com 17 anos que atendia pelo nome de Shirllein. E o que era pra ser mais um momento do meu dia tornou-se um freio para as horas, não um divisor de águas, mas um inesquecível momento de contemplação. Eram os olhos mais vivos e belos que já me deparei, saltavam de um rosto enigmático e simples, como se qualquer palavra se rendesse ao império daquela beleza. Os lábios naquele rosto eram de uma firmeza inquestionável, e ainda quando abriam alas para o enigmático sorriso as gôndolas de carne se mantinham exatas. Perguntei-lhe algumas trivialidades comuns para sua idade, e de súbito deparei-me com o sinônimo da palavra alegria, tão perseguido por mim ao longo dos anos. Era o ponto de fuga daquela menina, o qual levara-lhe direto para sua afirmação enquanto ser humano (para além do biológico), de modo simples e sem escalas no sentimento de pena que lhe cercara.
Mostrou suas feridas como de costume, falamos de um hospital escola de fato. Contudo, cada instante da sua vida carregava extrema preciosidade. A patologia que lhe atormentava é deveras cruel encaminhando-a para onde não se tem volta. Minha indignação parte do momento em que as mesmas pessoas que defendem a vida, roubam-lhe de modo frio, hipócrita e descarado. Seria em nome da ciência? Numa injusta herança do holocausto nazista... Não! Nem para isso! Era meramente para um grupo de estudantes universitários diagnosticarem o que os profissionais e estagiários sabiam decorado. Tudo isso para nós sairmos do paraíso bibliográfico e despencarmos por alguns minutos no sentimento traiçoeiro da pena, como se fossemos melhores, abençoados e detentores do conhecimento.
Fomos embora imbuídos apenas da responsabilidade com cálculos e textos para semana seguinte. Na despedida, duas vozes: - Trate de ficar boa logo! Em nome da educação? Em nome da caridade? Em nome da bondade? Não sei. Não é culpa das vozes, mas das discrepâncias históricas naturalizadas pela área da saúde. Todavia, a desnutrida, caquética, com uma fistula e uma colostomia devido ao câncer, não escolhera esse caminho. Não escolhera despertar mal estar, pena ou frieza, muito menos não ser dona do tempo.
Paro com a discrição de minhas indignações para me dedicar às escolhas dela. Com a bravura de quem enfrenta generais, burla as normas burguesas, ela empunha a espada contra todos os distúrbios em seu corpo. Ela quer comer, quer ler, quer sorrir e ir para casa. Ela vai. Não como quem faz isso todos os dias de modo automático na monocromática banalização da vida. Ela vai, pois persiste em desbravar o desconhecido, não por ausência da dor. Suas garras procuram defender a parte da vida que lhe é de direito e que ninguém pode nem poderá isentá-la. Seria como as palavras de João Cabral de Melo Neto “O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte”. E por todas essas características somadas a sua idade, a descoberta da adoção no período da doença, afirmo sem pensar duas vezes que aqueles olhos gozam da fortaleza que eu almejo ter ao menos por alguns instantes antes de minha morte.
E assim, sem a necessidade desenfreada e frustrante de ser feliz ela vive cada instante. Ontem fui vê-la sozinha. Não para dar força, mas para aprender e carregar aquele olhar tornando minha vida menos idiota. Pensei que ela precisaria de muita vida e em pouco tempo, o que de melhor consegui pensar foi no meu livro. Poemas tão clichês e rimas tão sem graça que hoje me nego a ler. Contudo era minha vida dos 12 aos 17 anos. Uma outra vida para deleite daqueles olhos. O rosto dela se preencheu de satisfação, como se aquelas palavras precisassem ser bebidas com voracidade. Gentilmente ela me pergunta se eu tenho caneta para fazer a dedicatória, eu inebriada de admiração fiz. Durante a conversa eu me perdia nas palavras, meio sem graça e com um sorriso insistente nos lábios (não poderia ser de outra forma diante das cores sem nome daquele olhar). Era eu quem bebia daquela fonte profunda de vida e luta.
Falaram-me que eu me envolvo demais. Não me importo, não admiro máquinas. Meu emocional não está confuso pela morte inevitável dela, já que isso faz parte da vida. Entrei em êxtase pela pessoa especial que eu tive a felicidade de encontrar e desenvolver minimamente potencialidades humanas riquíssimas. Agora, sinto a fúria dos que gozam da vida sem questionar o que fazem dela.

Talita Kumy Goes Silva


Os Três Mal-Amados
João Cabral de Melo Neto

Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.


"Risos revolucionários em cada canto dos lábios"

Intervenção Poética

Velhas Janelas